Uma lição fácil de se ter conversando com um guarda-parque é que o conhecimento das matas não se aprende em apostila, nem sentado em auditório ou sala de alvenaria, com professor de giz na mão e copiando lição do quadro negro. O aprendizado se constrói na lida do todo dia, na conversa respeitosa com a floresta, sua flora e fauna, suas nascentes, riachos e no convívio com os mais antigos de profissão.
É escorregando muito nas trilhas, sujando o coturno recém engraxado, rasgando a farda nos galhos, identificando o som dos bichos e decifrando o que é rastro de animal ou de caçador. Tem guarda dos mais bem vividos e conhecedores, mateiros mesmo, que nem precisam sair da viatura para saber se há algum malfeitor em ação. Só de olhar o movimento que ficou marcado na entrada da mata sabe se entrou gente e se ainda está lá ou já saiu.
Quando a chuva se escasseia, o guarda-parque já sabe que é tempo de redobrar a atenção e aguçar os instintos, pois uma temida visita, oportunista e avassaladora, pode aparecer a qualquer momento. É verdade que o cerrado tem uma bonita amizade com o fogo e sai revigorado de uma queimada natural (ou até bem manejada pelo homem que domina seus mistérios), como quem sai de um banho de ervas. Mas mesmo ele tem que ter esse tipo de visitante só de quando em vez senão também padece feio e as matas em geral sofrem muito nas secas e agonizam sob o fogo.
Esse parênteses sobre o laço entre fogo e o bioma cerrado já daria um bom pano pra manga, o que vale saber é que os acidente e crimes de queimada ameaçam a diversidade da vida das florestas.
Ser guarda-florestal é estar sempre de sobreaviso. Dizem que mesmo nos dias de folga, fora de plantão ou operação corta fogo, o verdadeiro guarda-parque está sempre com a farda por baixo da roupa, como tatuada no peito sua insígnia de protetor das florestas. Ao menor pressentimento de ameaça, rastro de caçador, ou sinal de fumaça, mais rápido que o super-homem, ele está pronto para o bom combate.
Até mesmo os colegas de trabalho que estiverem em campo para fazer algum serviço e, desavisados ou abusados, queriam desfrutar do hábito de pitar uma cigarrilha de palha após encerrar a marmita, certamente vão tomar uma bela bronca do guarda-florestal que estiver por perto. A mata não aceita desaforo. E o fogo, sorrateiro e ligeiro, brota de qualquer brasinha à toa, uma bituca miúda vira logo chama, sobretudo quando a chuva faz saudade.
As áreas florestais geralmente ficavam muito afastadas dos centros urbanos, distância que veio se encurtando velozmente, não necessariamente porque as áreas protegidas se agigantaram, mas porque as lavouras e as cidades se expandiram e as rodovias se multiplicaram até os limites de florestas antes de acesso difícil.
Assim, não era somente muito comum, mas praticamente regra que os guardas-florestais morassem no seio das matas que protegiam. O instinto de ligar 193 ao sinal de fogo é um costume, digamos assim, urbano. A localização distante, as grandes extensões dos parques, os limites de comunicação e a demora no deslocamento de carros e equipe externa, como a do corpo de bombeiros, requeriam que a brigada de incêndio estivesse já em campo, com a possibilidade de mobilização rápida.
Cabe colocar que encarar o fogo na floresta requer que se conheça muito bem a própria mata, a inclinação do terreno, o tipo de vegetação predominante em cada alqueire, o comportamento típico do vento em cada região, tanto quanto como se requer conhecer e respeitar o fogo. Hábeis em acionar hidrantes, domar mangueiras pesadas serpenteando e evacuar edifícios em chamas, os nobres bombeiros aprenderam com os guardas-florestais a dominar o conhecimento do combate a incêndios nas matas.
Hoje, com tecnologia e recursos à disposição, é possível ter o apoio de helicópteros despejando água, veículos mais velozes e comunicação quase infalível no apoio ao combate de grandes incêndios. Mas há nem tantos anos assim, o enfrentamento era na base da enxada, revirando a terra em brasa para evitar o renascimento das chamas, ou para sufocar o fogo rasteiro, para fazer aceiros pondo uma linha limite para propagação da queimada, manejando também as famosas vassouras-de-bruxa (abafadores feitos pelos próprios guardas com um cabo e tiras de borracha) e, principalmente com muita sabedoria, inclusive usando técnicas de manejo corajosas como o fogo contra fogo.
Mas não basta ter muitos recursos e tecnologia quando o fogo já está em proporções indomáveis, a disposição viva e o domínio das áreas florestais em que patrulham diariamente, o cuidado especial em monitorar as regiões que sabem ser mais sensíveis, torna esses trabalhadores anônimos heróis imprescindíveis na salvaguarda do patrimônio incalculável da biodiversidade das florestas. Por ali estarem todos os dias e com sentidos sempre aguçados, incontáveis vezes que conseguem agir logo no princípio dos focos, prevenindo desastres e perdas de grandes proporções, atacando o "inimigo" muitas vezes nas propriedades limítrofes, apagando o fogo nas fazendas vizinhas para evitar que chegue às áreas de conservação.
Quantas e quantas vezes, gerações de guardas-parques não eram chamados pelos plantonistas noturnos para encarar o fogo na escuridão da noite. No breu da madrugada ou em meio à fumaça e labaredas que podiam ter bem mais de vinte metros, consumindo as copas das árvores, limitando completamente a visão, a forma de se manter vivo é confiar nos colegas, seguir os comandos dos mais experientes e se comunicar com gritos.
O Sr. Aristides Leite foi admitido pelo Instituto Florestal de São Paulo em 1982 e conta, sem detalhar a certeza do ano, um episódio de combate ao fogo nas proximidades da Rodovia Fernão Dias, em perímetro do município de Guarulhos. Em fiscalização na área do Parque Estadual da Cantareira, avistou fogo alto na área de particular, quase chegando na área do parque, já eram dez horas da noite e estavam em cinco homens quando partiram para o combate ao incêndio. Na escuridão e em um terreno não conhecido, ele caiu em um buraco muito fundo, em que não conseguia sair sozinho. Com apito e gritos, conseguiu chamar a atenção de um dos colegas, que o ajudou a sair do buraco, momentos antes do fogo atingir aquele local.
Após jornadas como essa chegava em casa exausto, sem apetite algum. A fumaça embrulha o estômago, nem água desce, com custo toma um pouco de leite na tentativa de se desintoxicar, mais tarde um suco de fruta e um pão, comida não consegue, fica para outro dia.
O Sr, Aristides, como muitos colegas de ofício, teve outra ocupação antes de ingressar no serviço público, transitou em outras seções e outros tipos de funções como servidor estadual, aprendeu habilidades como pintar bem uma casa, cursou na juventude escola de arte dramática, mas se perguntarem qual sua profissão, responde sem titubear "Sou Guarda-Florestal".
(Imagem de queimada florestal de Archbos, www.freephotosbank.com).